Cinema como terapia - Sonata de Outono
- Psikika
- 24 de jan. de 2022
- 3 min de leitura

Não podemos deixar de nos espantar como o cinema (a arte em geral) pode ser uma janela a mundos íntimos que não são facilmente evidenciados quando não é “o nosso próprio mundo”.
“Sonata de Outono” é um filme de Ingmar Bergman de 1978. Como muitos dos filmes de Bergman, acedemos a um retrato íntimo psicológico bastante acutilante. Trata-se da relação complicada entre a mãe Charlotte - pianista bem sucedida - e a sua filha de meia-idade Eva - negligenciada pela mãe.
Acedemos a uma vivência que nos remete para o desencontro entre mãe e filha, com o papel materno desempenhado por uma mãe narcísica, e uma filha sem definição de quem é, perdida no mundo.
A relação mãe-filha é caracterizada por alguns aspetos únicos: a mãe é, muitas vezes, o primeiro modelo de identificação e que permanece ao longo da vida, e o facto de ambas serem do mesmo género pode ser emocionalmente intenso e por vezes ambivalente, acarretando também o significado e a pergunta: o que é ser-se mulher?
Este vínculo tão especial pode ser difícil de superar quando envolve o peso de dificuldades e sofrimentos do passado que inevitavelmente perpassa na relação com os filhos.
Em “Sonata de Outono”, a mãe Charlotte carrega um estilo narcísico de relação, exigindo constante validação dos outros ao seu redor, dos seus feitos e da sua imagem. Também a filha é, e foi em criança, alvo desta exigência: o amor aqui é condicional, aparecendo junto desta necessidade de engrandecimento da mãe - só valia a filha bonita, bem sucedida, talentosa que pudesse ser uma extensão das mais-valias da mãe. Ao mesmo tempo, as tentativas de Eva se diferenciar e constituir como um ser independente da sua mãe são alvo de ataques (narcísicos) desta, não havendo verdadeiro olhar para a sua filha como ser autónomo.


Esta filha constituiu-se portanto, na impossibilidade de relação autêntica com a sua mãe, nunca tendo sentido o amor incondicional da sua mãe e desenvolvendo em certos momentos um falso Self :
“Eu falava o que mandavas e imitava-te. Eu não me atrevia a ser eu mesma, nem quando estava sozinha…porque eu detestava tudo o que era meu.”
Ou seja, uma vez que não foi possível ser-se em plenitude, com oportunidade de ser amada pelo que simplesmente é, Eva recorreu à cópia do modelo materno, como forma de conseguir aquele amor. Uma terrível encruzilhada.
Assistimos a um confronto intenso entre mãe e filha, que nos remete para a intensidade e brutalidade desta relação materno-filial. Aqui é impossível a separação, porque nunca se esteve verdadeiramente junto, e, no entanto, o desejo regressivo e ilusório do lugar de proximidade está sempre presente.

Este instantâneo do que é uma relação deste tipo, não explora em profundidade de onde vem esta mãe, como é que se fez o seu estilo relacional e o vazio que transporta o seu Eu, mas não podemos deixar de pensar em como o trauma pode ser transgeracional, sendo transformado e elaborado, mas, mesmo sob diversas formas, transmitido nas famílias e nas relações. Como Eva diz:
“As feridas da mãe são passadas para a filha. É como se o cordão umbilical nunca tivesse sido cortado.”
Atrevemo-nos a destacar a importância que um processo psicoterapêutico pode ter na quebra deste tipo de transmissão do trauma pelas gerações, ajudando a sair dos nós de sofrimento nas quais a pessoa se desenvolveu, e a cortar o cordão umbilical, por forma a potenciar o crescimento e atingir também um nível mais maduro de relação com os outros e o mundo.
Psikikamente, desejo-vos um bom dia!
A.P.
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